quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Clítoris: lambidela 22

"Tinha dois meses de renda em atraso e começava a ficar cansado dos telefonemas do senhorio, a relembrar-mo. Não era a primeira vez que tinha dois meses em atraso, o homem já tivera tempo de se habituar à ideia e deixar-me em paz. O Senhor Adérito é um tipo de idade indefinida, eu diria que deve andar pelos 60, mas pode muito bem ter cinquenta e poucos ou sessenta e muitos. Cabelo ainda espesso, todo branco, nariz pontiagudo e vestido invariavelmente com calças de flanela e camisa de algodão aos quadrados. O que sei ao certo sobre ele é que é viúvo e não se dá com o seu único filho, que mais ano menos ano, é da mesma idade que eu. Assim que me caiu na conta o subsídio de natal, não hesitei um minuto. Ou lhe pagava o quanto antes ou sabia muito bem que o dinheiro se evaporaria numa questão de dias, sem que houvesse nada que eu pudesse fazer para me travar a mim mesmo. Daquela vez, tive uma epifania: iria pagar-lhe pessoalmente em vez de fazer a costumeira transferência. Aproveitava para contar uma historinha da carochinha. Fui ao banco e levantei o montante certo para perfazer dois meses de renda, uma puta duma fortuna. Liguei ao velhote e combinei passar por casa dele no dia seguinte, um Sábado, a meio da tarde. O Benfica jogava na Luz para a taça, às oito e um quarto da noite. Tinha mais do que tempo, antes de ir ver o jogo com a malta. Acordei por volta das três da tarde, bem-disposto e sem ponta de ressaca, apesar dos copos da noite anterior. Fiz um café bem forte, enquanto fumava um charro na varanda. Andei por ali às voltas, a tentar decidir se saía para almoçar ou arriscava cozinhar qualquer coisa. Entretanto, decidi que nada como uma cervejinha fresquinha para abrir o apetite. Ainda tinha quatro minis no frigorífico e comecei a bebê-las, uma a uma, na maior das calmas.
Ao fim da segunda mini já tinha posto dois ovos a cozer e aberto um frasco com grão-de-bico e uma lata de sardinhas de conserva. Misturei aquilo tudo, com uma pitada de azeite por cima. A coisa saiu melhor do que eu pensei, empurrei aquela mistela com as duas minis restantes. Começava a sentir-me cheio de energia, com vontade de sair e aproveitar cada minuto daquele dia. Desci, apanhei a minha vizinha milf no elevador, o que encarei como um bom sinal de que o dia iria correr bem, dediquei-lhe o mais simpático “boa tarde” que tinha dentro de mim e entrei na Doçuras, onde tomei um café cheio que empurrei com duas macieiras. Pouco passava das cinco e meia da tarde e já sentia na cabeça aquela maravilhosa sensação de início de bebedeira. Pus-me a andar para casa do meu senhorio, que ficava a menos de dez minutos a pé.
Mal entrei, passei-lhe o dinheiro para a mão. Pedi-lhe imensas desculpas pelo atraso e comecei a improvisar uma interminável lengalenga de infortúnios e má sorte, que é provável que tenha incluído a saúde debilitada de algum parente próximo. O que sei é que, talvez hipnotizado pelo maço de notas que lhe deixara nas mãos, o homem me convidou a sentar e teve a feliz ideia de me perguntar se aceitava um copo.
- Se me fizer companhia, até aceito. Veja lá se não é muita maçada, senhor Adérito.
O velhote olhou para mim, surpreso. Tinha feito a pergunta de forma mecânica, sem pensar nas palavras que pronunciava. Senti-me inspecionado, como se fosse um enigma a desvendar. Devo ter passado no teste, porque me perguntou, já com um sorriso trocista desenhado nos lábios, enquanto rodopiava na mão uma garrafa de Periquita:
- Pode ser um bom tinto?
- Venha de lá ele!
Encheu dois copos. Aquilo obrigava a conversa e fiquei na dúvida de ter feito bem em aceitar. Eu queria prolongar aquela doce sensação de quase bêbado que trazia no corpo quando ali entrara. Calculei que ao velhote lhe fizesse bem um pouco de companhia e dei corda à língua. Elogiei-lhe o apartamento, enquanto passava os olhos em redor da sala. A meio de uma estante coberta de livros de cima a baixo, habitava uma águia com o símbolo do glorioso. Soube ali que aquela tarde prometia.
- É do Benfica, senhor Adérito? – Perguntei-lhe, enquanto apontava a águia com a mão.
- Com muito orgulho, rapaz.
- Isso merece um brinde. Eu sou sócio e doente.
- Eu cá já devia ser sócio quando tu nasceste, rapaz.
Fomos por ali fora, sempre a acelerar. Treinadores, tácticas, aquisições, títulos, o tipo sabia tudo. Levantou-se e regressou com uns amendoins e umas batatas fritas de pacote.
- É o que tenho, rapaz.
- Não é preciso incomodar-se, senhor Adérito.
Conversa puxa conversa, esvaziámos a garrafa. O homem nem pestanejou, voltou a levantar-se e em menos de um ai já estava a abrir a segunda:
- Ficas cá a ver o jogo, rapaz?
Como raio é que eu ia recusar aquele convite? A garrafa já estava aberta, faltava menos de meia hora para começar, eu já não ia chegar a tempo ao café onde a malta tinha combinado juntar-se e, fosse como fosse, eu ali comia e bebia à borla. E claro, cereja em cima do bolo, dava-me jeito cair nas boas graças do senhorio, sempre podia ir atrasando uma renda ou outra.
- Veja lá, senhor Adérito, não quero estar a atrapalhar.
- Ora essa, rapaz, até me fazes companhia, deixa-me lá meter isto no canal onde vão transmitir o jogo.
Ligou a televisão, mudámo-nos para o sofá, pousando na mesinha de apoio copos, garrafa e aperitivos. Tinha para duas horas e a beber àquele ritmo ia sair dali sem conseguir perceber o resultado final. Enviei uma sms à socapa ao Diogo e ao André: “vou ver a bola com o senhorio, já estamos a ficar grossos, renda em atraso, a quanto obrigas”.
Ao intervalo o glorioso ganhava 3-0 a uns mortos da Madeira e eu e o senhor Adérito já éramos os melhores amigos. Passou a tratar-me por Zé, o que sempre me irritou, mas tive que deixar passar.
- Ó Zé, esquece lá isso do senhor, trata-me por Adérito, pá! Deixa-te estar aí sossegado que eu vou ali dentro à cozinha ver se ainda tenho um salpicão que é de estalar.
Veio o salpicão, com uma terceira garrafa e veio também a segunda parte, que deu mais três golos para o glorioso e alguns bons lances de futebol, mas quem é que queria saber disso, com tanta periquita? Às tantas há um grande plano de uma loira de mamas grandes na bancada.
- Ó Zé, só cá falta é um par de mamas igual àquele.
- Um não, dois.
- Tu namoras, ó Zé?
- Vou namorando, Adérito, duas semanas com cada uma.
- Eu logo vi que és cá dos meus, pá. Olha, quando acabar a bola, vamos ali visitar umas amigas. Alinhas, não alinhas?
Com a bebedeira que tinha, eu até alinharia em pegar um touro pelos cornos, quanto mais em ir às putas. Desde que fosse ele a pagar, claro. Achei por bem deixar isso claro.
- Ó Adérito, não me leves a mal, mas estou mal de massas, tive aí uns azares, como já te disse e…
- É pá, ó Zé, que conversa é essa? Eu é que convido!
Mal o árbitro apitou para o final do jogo, o senhor Adérito pegou no telemóvel e em menos de um minuto e vários “amorzinho” depois, tinha a festa combinada.
- Embora, Zé, que não se deve fazer esperar uma senhora."

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